encontrei um texto sobre o local onde nasci, com referência aos meus avós e a muitos locais da minha infância:
Alto de Rodes
“… pois sempre se chamou àquele sítio dos arredores, hoje bairro citadino, Alto de Rodes. Aquele campo de nível elevado deve ter pertencido aos Cavaleiros de Rodes, ordem militar cuja sede em Portugal esteve no Crato, onde foi “prior” o infeliz pretendente D. António. Trata-se, pois, de um ponto nobre da cidade, onde existiu antigamente um dos elementos da sua defesa – Alto dos Cavaleiros de Rodes, Alto de Rodes……(recorte do jornal, cedido por José Amaro, filho de Zé Montanhas, conhecido vendedor de peixe, na praça, e presidente do clube durante largos anos)
Alto de Rodes
“… pois sempre se chamou àquele sítio dos arredores, hoje bairro citadino, Alto de Rodes. Aquele campo de nível elevado deve ter pertencido aos Cavaleiros de Rodes, ordem militar cuja sede em Portugal esteve no Crato, onde foi “prior” o infeliz pretendente D. António. Trata-se, pois, de um ponto nobre da cidade, onde existiu antigamente um dos elementos da sua defesa – Alto dos Cavaleiros de Rodes, Alto de Rodes……(recorte do jornal, cedido por José Amaro, filho de Zé Montanhas, conhecido vendedor de peixe, na praça, e presidente do clube durante largos anos)
Em 2004 vim morar para o bairro do Alto de Rodes, na R. Gaspar Leão.Residindo aqui, é fácil absorver e detectar o que resta do passado, é fácil retroceder no tempo e deixar-nos impregnar pelo dia a dia dos habitantes.Ainda sobram, bem vincados, muitos vestígios humanos e físicos…Existem muitas casas envelhecidas, que mantém o “traço” do passado recente, algumas fechadas, outras com residentes idosos, casados ou viúvos, arrastando a sua solidão, carregados de saudades, procurando alívio no convívio da rua, na ajuda do vizinho, nas conversas da mercearia ou no clube. Aqui, todos se conhecem e, se chega algum novo residente, é imperioso saber de quem se trata, para poder ser, ou não, aceite pela comunidade mais antiga, sem desconfianças.Nas ruas das Olarias, Rui Barreto, Gaspar Leão, César Pola, Joana de Alte, Mestre Manuel Martins, D. Frei João de Faro, Belchior Vieira, Alto de Rodes (antiga Rua A), encontram-se velhas e pequenas casas, com os seus habitantes sentados à porta, convivendo uns com os outros ou, simplesmente, de pé à porta da residência, ou à esquina, olhando quem passa.A postura das pessoas, os seus hábitos tranquilos, sem pressas, os diálogos centrados no disse que disse, os comentários feitos às novidades, em voz bem alta, o espírito ingénuo, mas permanente, de “meter o nariz na vida de cada um”… permite confirmar, que aqui vive-se diferente, com imensos resíduos do passado…Falando com a vizinha Vitória, que sempre aqui viveu, recordando os meus tempos de menina, que por aqui andei, consigo entrar na “máquina do tempo” e recuar para os anos 40.Para consciencializar a existência real do passado, será necessário apagar as novas casas, as novas ruas, a nova avenida, tudo o que é novo, incluindo o edifício da Emissora, que começou a ser construído, na época, como o 1º sinal de modernidade.As habitações do Alto de Rodes foram construídas em terrenos barrentos, morfologicamente acidentados e pouco transitáveis. Nesse passado, não longínquo, o solo irregular impunha-se à população, que substantivavam, as relativamente pequenas, elevações e depressões, com os nomes “baixura” e “altura”.A zona da “altura”, com imensas “covas”, muito vasta, sem casas, rodeava o depósito da água e distanciava-o de tal maneira, que este ficava quase invisível aos olhos dos habitantes do Alto de Rodes. Em linha recta era impossível ter acesso ao local, porque o terreno acidentado dificultava a travessia (era frequentado pelos areeiros).A “baixura” era uma cova infinita em tamanho, difícil de transpor, que enchia de água no Inverno e para onde eram despejados os lixos, porque nesta zona da cidade, não havia a recolha camarária. Hoje é a Praceta Henrique Bernardo Ramos, espaço ajardinado, incluído na urbanização do Montinho, que recorda o dinâmico e generoso comerciante, bombeiro, (2º comandante) e sobretudo folclorista do grupo de Faro, ensaiador até 1970.Devido à “baixura” a R. D. Frei João de Faro com casas só de um lado, ficava à beira de um verdadeiro abismo, deixando-as destacadas, no alto.Saindo da R. do Alportel, conhecida como estrada de S. Brás, e entrando para a zona do Alto de Rodes, ao início, vivia um pastor de ovelhas e o vendedor de carvão e fazedor de bolas com cisco e lodo, o Bacoco, que percorria as ruas da cidade, anunciando-se com o toque da sua corneta, igual à dos agulheiros da C.P. O produto era vendável porque o aquecimento usado, em muitas casas, era feito com o recurso às chamadas braseiras, com a utilização de carvão e bolas.Um pouco mais à frente, onde hoje há um talho, no meio de casas não existentes na época, na R. D. João Frei de Faro, havia uma nora e uma enorme palmeira, que a rapaziada atacava na recolha das tâmaras, “datlas”, como lhe chamavam.O imenso espaço envolvendo o Alto de Rodes, incluindo o depósito da água, a Emissora, a Igreja de S. Luís, o cemitério dos Judeus, o Bairro da Lata, o estádio, a Carreira de tiro (espaldão), o edifício dos Celeiros chegando mesmo ao Liceu, era idêntico, com “baixuras” e “alturas”, difíceis de transpor, terrenos arenosos, endurecidos, salpicados de hortas com moradias, noras e tanques, amendoeiras, marmeleiros, romãzeiras, laranjeiras e pouco mais…A horta do Xixo, que ficava na zona do Alto de Rodes, tinha uma nora e três tanques, sendo um para lavar roupa de cor, outro roupa branca, o terceiro para enxaguá-la e para banhos da garotada.No Alto de Rodes poucas pessoas tinham água em casa. Abasteciam-se no poço, situado no Largo da Bica, que tinha uma roldana e mais tarde, na bica. Para lavar roupa recorriam aos tanques do Xixo, que cobrava um determinado valor, pela sua utilização. A roupa era lavada e quando necessário, deixada numa casita, em alguidares de barro, em “sabonária”, para no outro dia ser de novo esfregada. A roupa branca, quando muito suja era clareada com uma “boneca” de trapo, contendo cloreto, que dissolviam na água. Tinham estendais e as lavadeiras de profissão também aproveitavam estas condições.A horta proporcionava ainda, aos residentes, a compra de legumes e fruta.Seguindo em linha recta à R. Joana de Alte, um pouco para lá da recente Avenida Calouste Gulbenkian, havia uma nascente, um fio de água, que levou os residentes do Alto de Rodes a aproveitar e eleger o sítio, para a criação de porcos. Construíam pocilgas e mantinham nelas, os animais, para sustento próprio ou para negócio. Muitas vezes, alimentavam-nos a meias e a matança era dia de festa, para todo o bairro, com a colaboração e o benefício de todos.Caracterizado o Alto de Rodes e o espaço envolvente, talvez se entenda melhor a vida comunitária dos seus habitantes.As portas de casa não se fechavam e os residentes valiam-se uns aos outros. Pessoas honestas, unidas na sobrevivência, apoiando-se, para alívio, à escassez de meios. Viviam felizes apesar das dificuldades económicas, todos se conheciam, davam “de vaia” quando se encontravam, corriam à porta de casa, espantados, para ver passar um carro, porque na zona só circulavam burros e carros de besta. Todas as ruas eram de terra batida e só nos anos 70 foram alcatroadas, com o financiamento da C.R.T.A (Comissão Regional de Turismo do Algarve).Quando, por motivos variados, alguém se ausentava de casa, a vizinha ajudava, pondo o grão ao lume, vigiando a panela, vendo a velhota que estava acamada, olhando pelo filho pequeno que ficara sozinho.O aparecimento diário do vendedor de peixe, tocando no seu enorme búzio, proporcionava a junção do mulherio, para a compra e regateio de meia dúzia de sardinhas ou um quarteirão de carapaus… havendo a hipótese de trocar ovos por peixe.As refeições não iam muito além de sopinhas de batatas, feijão verde guisado, jantares de grão ou feijão ou galinha criada em casa. Abasteciam-se nas vendas do Chico e do Almeida, na R. Gaspar Leão, no Chico da R. das Olarias, na menina Silvina e no Baptista da R. César Pola.Para cozinhar tinham o fogareiro a carvão, ou o fogão a petróleo, tudo muito lento, obrigando à vigilância permanente. Alguns amassavam e tendiam os seus pães, em casa, transportando-os em tabuleiros, levados à cabeça, para serem cozidos no forno de S. Pedro.As divisões das casitas, reduzidas em tamanho interior, comportavam uma cama ou uma mesa e pouco mais. Tinham um pequeno “ reservado”, para as necessidades imperiosas, um quintalzito e…a rua como continuidade à casa. Alguma roupa era estendida à porta da habitação, em cordas esticadas com uma cana, a sala de visitas era infinita em tamanho…alargava -se pelas ruas do bairro…O Largo da Bica era um ponto de encontro e o local de brinquedo da rapaziada.O clima de entreajuda que fazia parte das vivências dos habitantes do Alto Rodes, bairro isolado pela imposição morfológica do terreno, afastado do centro da cidade, impunha a necessidade de um local fixo para convívio. As frias noites de Inverno, as habitações pequenas, as ruas sem iluminação, pouco dinheiro na algibeira, pessoas pouco letradas mas ávidas e necessitadas de diversões, empurraram, principalmente o sector masculino, para a criação de um ponto de encontro.Esta maneira de estar na vida ganhou expressão, com a criação do Futebol clube “O Vitória”, em 1931, conhecido popularmente por CUF, por ter tido o patrocínio do Clube da Companhia União Fabril.A primeira sede foi na R. das Olarias, passando para a R. Gaspar Leão, a 8 de Setembro de 1947 como consta no contrato assinado pelo proprietário da casa, Joaquim António, o fiador e solidariamente responsável com a direcção do Clube, carpinteiro, Artur António do Nascimento, e outras testemunhas.Embora o nome do clube focasse “futebol”, as actividades desportivas tiveram papel pouco relevante, não indo além dum grupo de ciclismo, que pouco resistiu, e de equipas de futebol. Socialmente, o clube foi, e é ainda, o local de eleição dos moradores.Aqui se reuniam, os homens, na maioria corticeiros, empregados do caminho-de-ferro, operários de outros sectores, a procurar distracção para as longas noites de Inverno, jogando às cartas, fazendo campeonatos de “manilha”, “kino”, damas, dominó.Semanalmente, aos sábados, o baile do clube servia para aliviar tensões, armazenadas durante os dias de trabalho.O Clube recorria a vários estratagemas, a angariar fundos de sobrevivência. Praticava-se, durante os bailes, a dança da “tablete”. De surpresa, aparecia um vendedor, “obrigando” o “homem” a oferecer um chocolate ao seu par.Por altura da Páscoa, o baile da “pinha”, levava, igualmente, a despesas extras. Uma armação em madeira, em forma de pinha e aos gomes, colocada ao centro da sala de dança, com fitas a serem compradas e puxadas pelos bailarinos. Só uma delas abriria a pinha premiando o par, com um brinde surpresa.Os bailes de Carnaval eram animados, com as mascarinhas, e toda a comunidade participava, intensamente, não só no clube como nas ruas do bairro.Marco Paulo, a famosa orquestra Night and Day, chegaram a actuar na Cuf, assim como os famosos Carminho, dono do café da R. do Alportel, Rabinete, contínuo do Liceu, Galinho, escaiolador, que faziam parte do Grupo Folclórico de Faro e dançavam a “escovinha” do corridinho algarvio, primorosamente, ensaiados por Henrique B. Ramos, “general mangueira”, tributo de amizade.Pelos Santos Populares as ruas eram enfeitadas com arcos, balões e bandeiras de papel colorido, os bailes prolongavam-se noite fora, na sociedade e no Largo da Bica. Os moradores confraternizavam, comendo caracóis, peixe frito e outros petiscos. Destes convívios permanentes, repletos de verdadeira união e amizade, resultaram casamentos. O Alto de Rodes chegou a ter uma marcha, que venceu a do Montenegro, tendo ido a Lisboa, actuar.